1 de fevereiro de 2011

Fúria Canina por Alec Silva

Este é um texto que me foi oferecido de presente pelo amigo escritor Alec Silva, autor de Ariane e da série A Fábula Inacabada.
É uma visão particular do universo do livro Fúria Lupina, propondo novas possibilidades de criaturas.
Sou muito grato ao Alec por ter dedicado parte do seu tempo, em meio à produção dos próximos livros da Fábula Inacabada, para desenvolver este texto.



Fúria Canina

Desde criança havia três coisas que o agradavam: ter a companhia dos cães, aventurar-se pela mata e ver acidentes horríveis.

Enquanto a maioria das crianças se divertia com desenhos e filmes da Disney, ele preferia ver, testemunhar a desgraça humana, o sofrimento, o sangue jorrando, a carne e os ossos expostos como num açougue, a vida por um fio.
Mas, se o sofrimento fosse o de um cachorro, era como se a dor fosse dele também. E isso o atormentava. Um canídeo era muito mais próximo a ele do que a família que o adotara quando ainda bebê.
Aos treze anos, iniciou-se uma sequência de episódios que marcara a sua vida para sempre.
O irmão de criação, um ano mais novo do que ele, maltratara um filhote da raça pitbull. Aquilo o irritou, e o fez bater no outro por longos minutos, até deixá-lo inconsciente.
Em seguida, devido ao incidente, o menino passou por alguns psiquiatras que o diagnosticaram com traços psicopatas. Um dos especialistas até avisou que ele era antissocial
O terceiro episódio foi a internação numa instituição psiquiátrica, pois na época achava-se que a psicopatia era uma doença mental. Isso o fez odiar ainda mais a raça humana, a desejar sangue e morte alheia.
Anos passaram-se. A criança tornou-se um adolescente que sempre buscava a solidão, exceto quando mantinha contato com os cães sarnentos que apareciam ora ou outra no portão da clínica ou no parque. Fugir era algo que até então ele não cogitava fazer, afinal estava num lugar perto da natureza e com pessoas que também foram excluídas da sociedade por algum motivo, por serem diferentes, assim como ele.
No entanto, veio o quarto episódio, episódio que marcaria ainda mais a sua existência.
Uma cadela prenhe passeava pelo pátio, já no final de tarde. Todos os pacientes principiavam a ir para os seus quartos, mas o jovem resolveu aproximar-se do animal, como sempre fazia.
De repente um dos enfermeiros chutou a cabeça do animal, que era uma criatura pequena, com toda a força que dispôs, fazendo-a latir de dor, enquanto o sangue escorria pela boca e o feto saía pelo orifício, coberto de sangue.
Aquela cena enfureceu o rapaz, que avançou para cima do agressor da criatura indefesa. Ele agarrou-lhe o pescoço e apertou, sufocando-o. Uma força descomunal o dominava naquele momento.
Quatro outros enfermeiros tentaram separá-lo da vítima, mas foi em vão. Era como se o paciente estivesse possuído pelo demônio.
Subitamente todo o corpo do jovem contorceu-se, estalando ossos, provocando uma dor inimaginável, um aumento de tamanho e de pelos no corpo. Embora sentisse muita dor, ele manteve-se firme, sem soltar o enfermeiro, que agora estava apavorado diante do monstro que se formava perante seus olhos.
A metamorfose prosseguiu. A cabeça do rapaz alongou-se, adquirindo a forma da cabeça de um cachorro, de um rottweiler negro com uma mancha castanha no olho esquerdo. O corpo tornou-se extremamente musculoso, robusto como o corpo de um cachorro da raça que herdara a aparência.
O pânico foi geral.
Quando findou a transformação, o homem que o homem-cão segurava estava morto, com o pescoço quebrado, pendendo para o lado.
Largando a vítima abatida, a criatura avançou sobre outro enfermeiro, abocanhando-lhe o ombro esquerdo e forçando-o a se deslocar ― ação rápida devida a sua mordida de 2,5 toneladas por centímetro quadrado. Sacudiu o membro arrancado, sentindo-se o predador supremo. A seguir, com a pata dianteira direita, pressionou a cabeça da segunda vítima contra o piso, estourando-a facilmente.
Todos corriam desesperados, gritando.
A fera ergueu-se sobre as patas traseiras, exibindo os seus quase três metros de altura, todo coberto de sangue. Farejou o pânico de todas as suas vítimas. Libertaria toda a sua fúria ensandecida em cada um que estava ali, uma fúria de vinte anos.
***
O homem-cão corria pela rua deserta, uivando e latindo, chamando os cães a se juntarem a ele, sendo prontamente atendido. Ele era o rei sobre cada canídeo daquela cidade, um predador voraz e invencível. Na verdade, era o rei de todas as cidades em que passava, caçando cada um que ousasse maltratar um cachorro, libertando os seus irmãos e formando uma matilha imensa.
Há vários anos deixara aquela vida tola para trás. Agora era ele mesmo, uma fera mortal e terrível, uma criatura muito mais perigosa do que qualquer lobisomem, que aliás já tivera contato e lutara, vencendo.
O primeiro contato foi com um membro de uma organização secreta, uma tal Alcateia Global, que fiscaliza os lobisomens do mundo inteiro. Queria recrutá-lo, mas ele se recusou, afinal não era um lobo, mas um cão, um animal que apenas descendia dos lobos, e nada mais.
O segundo contato foi com um grupo de ecoterroristas, o Green Death, que o queria como membro ativo para combater criminosos que acabam com a natureza, mas ele recusou, pois fazia suas próprias leis.
E os demais contatos foram lutas para o homem-cão provar que era superior aos lobos. Era a vez de a fúria canina dominar o mundo, de um cachorro ganhar de uma vez por todas o espaço que era até então dos lobos.