30 de maio de 2010

Fúria Lupina Brasil - Degustação 4


Nota: este é um capítulo de degustação do livro "Fúria Lupina - Brasil" (2010). Para ler outros capítulos, CLIQUE AQUI.

A Reunião

Quem vê Caroline sentada no sofá da sala de estar, com a cabeça repousada no colo da mãe, assistindo o desenho animado “Bicudo o Lobisomem”, não desconfia que esta garotinha bonita e sorridente seja aquele bebê que, há uma década, nascia neste mesmo casarão de fazenda, numa fria madrugada coroada por uivos e celebrações.
Ela tem pleno conhecimento de sua condição, e espera ansiosamente o momento de sua primeira transformação. Segundo Rui, seu pai, isso só será possível quando a fisiologia lupina fizer parte de seu frágil corpo humano.
No ano passado, em seu aniversário de nove anos, Caroline perguntou ao pai quando ela saberia que seu corpo estaria pronto para a metamorfose que ela tanto deseja. Também falou sobre seu grande temor, o de simplesmente não ser capaz de se tornar uma mulher-lobo. “Você será capaz, posso afirmar”, disse ele, “pois foi sangue de lobo que provei ao te segurar entre minhas mãos, nos seus primeiros instantes neste mundo.”
Isso a acalmou, pois seu pai é a pessoa em quem mais confia, e a que mais respeita. Ela apenas ficou intrigada com a resposta que veio em seguida, mais nebulosa do que gostaria: “Estará pronta quando um novo sentido sobrepujar todos os já existentes.”
Rui Lopo recebe, na varanda de sua casa, três amigos íntimos. A primeira a chegar foi a matriarca da família Pastrana, Júlia. Logo em seguida, André e Lucinda Veiga saúdam os presentes e se acomodam em cadeiras ao redor da mesa redonda, sobre a qual repousa uma jarra de suco de maracujá gelado, copos e uma carta.
O início de tarde está agradável e quente, e o suco é muito bem recebido por todos. Já a carta não é tão bem-vinda, e seu conteúdo é o motivo desta reunião. Trata-se de uma convocação, para uma conversa com Pernambuco Nogueira, conhecido político da cidade de Joanópolis, e com o delegado Adão Fuller, na delegacia da cidade.
As três famílias são formadas por homens-lobo, já bem instaladas em pontos isolados da cidade. Os Lopo e os Veiga são originários de Portugal, e os Pastrana do México. Quando, cada um a seu tempo, optaram por fincar raízes aqui, procuraram “domesticar” sua fúria ancestral, de maneira a não prejudicar a população local, convivendo pacificamente. Quando se transformam, sempre o fazem em áreas afastadas, em meio a matas densas e montes de difícil acesso.
Possuem criações de animais para aplacar sua fome, mantém plantações e inclusive têm alguns de seus membros trabalhando na cidade, no comércio e no turismo. Aprenderam a ser reservados, a respeitar o povo e a amar Joanópolis.
A carta, apesar da escrita rebuscada e da cordialidade das palavras, transparece discretamente certo tom de ameaça, algo do tipo “nós sabemos o que vocês são”. O receio de perder tudo o que têm conquistado há gerações alimenta a discussão do quarteto, definindo estratégias, formulando defesas e até levando em consideração a possibilidade de propor algum tipo de acordo. Eles querem a todo custo evitar um conflito, que levaria a um banho de sangue e, consequentemente, a um exílio das famílias.
Chegada a hora de partir para a reunião, entram no carro Rui e sua esposa Aline, acompanhados de Júlia, já cientes de como proceder. A estratégia adotada foi a da cautela, e até mesmo da negação, caso não tenham provas concretas de sua natureza. Da janela do carro, Rui chama seu filho Rômulo e pede para que cuide de sua irmã, porque seu irmão gêmeo, Remo, está fazendo compras na cidade.
O carro parte, e um temor silencioso flutua sobre o trio, durante todo o trajeto até a delegacia. Todos têm um forte sentimento de que algo intenso acontecerá a todos hoje, e não sabem dizer se essa sensação é boa ou ruim. Resta agora encarar a situação com toda a coragem com a qual foram agraciados, e arcar com as consequências dela advindas.
Chegando à delegacia, eles foram encaminhados a uma sala de reunião nos fundos. Os três acomodaram-se em cadeiras estofadas, em frente a Adão e Nogueira, ao redor de uma grande mesa oval. Ás costas do delegado, uma ampla janela com as persianas levantadas deixa a sala às vistas de um grande contingente de policiais que por ali circula, com ares de despreocupação, mas que sempre tem alguém vigiando o interior do recinto, para o caso de alguma emergência. Uma clara demonstração de poder, visando a intimidação dos três. Pernambuco Nogueira inicia a conversa:
– Senhor e senhoras, não é de hoje que pessoas da área rural de nossa cidade vêm relatando avistamentos de criaturas de natureza indefinida, ameaçadoras e vorazes. Eu gostaria de saber se podemos ter alguma ajuda por parte de vocês para esclarecer este mistério?
– O que o senhor insinua? – a voz de Rui é calma.
– Insinuo que, caso essas ameaças não se afastem da minha cidade, serei obrigado a usar minha rede de conhecidos do governo federal para convocar o exército brasileiro, e iniciar a temporada de caça ao lobisomem!
– Veja bem, com base em que o sen... – Júlia é interrompida pela abertura repentina da porta.
– Não finjam mais! Ouçam o batido do seu horrendo coração denunciador! – Caroline aponta na direção do político. – Você é um mentiroso, e usa seu poder para intimidar, satisfazer seus torpes desejos!
Dois policiais abordam a menina e iniciam sua retirada da sala, ao mesmo tempo que Rui, Aline e Júlia se levantam. Rômulo e Remo são mantidos do lado de fora por outros policiais. O delegado imediatamente ordena que larguem a criança e deixem a sala. Também pede para que todos sentem-se novamente. Tal atitude foi movida por dois motivos.
O primeiro é que nunca havia ouvido tão calorosa referência a Edgar Allan Poe, muito menos vinda de uma criança. Além disso, o delegado não nutre muita simpatia por Nogueira, que sempre que pode usa seu cargo de poder para prejudicar alguém. Ele mesmo acha um absurdo esta reunião, mas foi, como sempre, pressionado pelo político.
– Isto é um ultraje! – reclama Nogueira, em tom indignado.
– Ofensa maior são os seus desmandos e obscenidades! Aos meus ouvidos chega o tamborilar do coração de um mentiroso, e meu olfato reconhece em você um perfume bem familiar, escondido sob uma camada de medo e de luxúria! É cheiro de sexo, com um leve traço de Lancôme. – os olhos de Caroline estão vidrados, e sua voz de criança soa estridente no interior da sala fechada.
O espanto se reflete no rosto de cada um dos adultos presentes. É tudo muito surreal: a menina não tem esse tipo de atitude, não utiliza o vocabulário que escapa de seus lábios, e fala de coisas das quais com certeza não tem conhecimento nem experiência. Mas quem está mais chocado é Adão. Foi ele mesmo que presenteou sua esposa com o perfume francês, que pediu para a um amigo do Rio de Janeiro trazer, quando ele foi para Paris nas férias.
A mulher até se gaba de ser a única da cidade a ter um Lancôme, que não deixa ninguém usar, pois sabe que levará um bom tempo até ter acesso a outro do tipo. A vontade que tem agora é de sacar a arma e tirar essa história a limpo, arrancar essa confissão do imoral sentado ao seu lado, mas seu lado profissional fala mais alto.
– Vocês são uma ameaça! – vocifera o político, batendo na mesa e levantando-se, fazendo com que a cadeira bata na parede às suas costas. Os policiais do lado de fora colocam-se em prontidão, mas são acalmados por um gesto do delegado.
– Temos atuado como os cães de guarda desta cidade, e vocês sabem bem disso. – a voz da menina é mais calma, porém enfática. – Você sabe bem o que aconteceu com o estuprador que aterrorizou esta cidade há vinte anos atrás. Os crimes na área rural são praticamente inexistentes, e isso é devido à atuação de nosso povo. Livramos inclusive o seu filho de uma emboscada nos limites da cidade, arquitetada por vingança à sua pessoa.
– Não envolvam minha família niss...
– Cale a boca! – a mão forte do delegado força-o a sentar-se novamente, e Adão apressa-se em fechar as persianas da janela. – Senhor Rui, peço desculpas pelo mal-entendido. Saibam que todos têm o meu apoio a partir de hoje, sempre que precisarem podem me procurar. É uma honra tê-los por perto. Vocês estão liberados. Peço licença para que eu possa usar esta sala para uma conversa particular com o excelentíssimo senhor Pernambuco Nogueira.
Rui mentaliza o termo “desfazer vínculo” e conduz para a saída a criança desorientada e confusa. Ela se sente como se acabasse de despertar de um sonho maluco, sem sentido. Após se despedir de Rui e das mulheres, o delegado fecha a porta atrás de si, cruzando os braços e fitando o político de maneira rude.
Nogueira limpa o suor frio da testa, sentindo-se como uma grande águia, cujas asas acabam de ser destroçadas. Ele amaldiçoa o presidente Figueiredo, que promoveu a maldita abertura política, tirando o poder de seus amiguinhos da ditadura, que lhe ofereciam cobertura aos seus desmandos. A conversa será longa, e acabará com um casamento desfeito, um pequeno ditador destituído e um profissional sério liberto das algemas do coronelismo.
***
Na propriedade dos Lopo, Rui tem uma conversa séria em família. O patriarca senta-se à cabeceira, tendo à sua direita seus filhos Remo, Rômulo e seu irmão Miguel, que mora ali perto. À esquerda, sua esposa e a abatida e assustada Caroline. Sua voz é calma e firme.
– Já sabemos que Caroline forçou Remo, logo que este chegou, a levá-la à cidade, nem deixando-o descarregar as compras do caminhão. Rômulo não conseguiu acalmá-la, nem convencê-la a mudar de ideia.
– Ela parecia que tava possuída! Até ameaçou a gente! – exclama Rômulo.
– Tudo bem, não o estou culpando disso, apesar dela ter ficado sob sua responsabilidade. Carol, explique-se.
– Hoje eu acordei esquisita, com o corpo muito quente. Eu achei que tava com febre, por causa do sorvete que tomei ontem. – a voz de Caroline é apagada, pois ela sente-se repreendida. – Depois que o senhor saiu, eu senti um negócio esquisito no peito, o coração batia sem parar. Aí eu comecei a pensar num monte de coisa esquisita, e a única coisa que eu queria era ir atrás de vocês.
– Eu acabei cedendo, porque senão ela ia correndo até a cidade. A gente levando, pelo menos tem dois marmanjos de dezoito anos tomando conta, né?
– Eu sei, Remo, e vou dizer porque não vou deixar nenhum de vocês de castigo: Caroline finalmente chegou ao último estágio: ela estabeleceu contato mental com a alcateia! Foi tudo muito repentino e acima de tudo precoce, pois isso ocorre por volta dos treze anos de idade. Por causa disso, ela ficou descontrolada e despejou um turbilhão de pensamentos da alcateia naquela sala. Quando ouviu o coração do político batucando por causa das mentiras que falava, puxou até um fiapo de um conto de Poe, que ela nunca leu na vida, e que com certeza veio da mente de Miguel, que é fã do escritor.
– Foi isso mesmo! – sorri o tio da garota. – Foi o que me veio à mente no momento em que senti o que ela ouvia. Na verdade, tínhamos muitos argumentos a utilizar como contra-ataque, mas aguardávamos apenas o momento oportuno, se fosse necessário. Mas essa pequena sem-noção jogou tudo na cara do patife, sem dar tempo de ninguém respirar! – todos riem, com exceção de Caroline, vermelha de vergonha.
– Bem, agora todos sabemos o que deve ser feito, correto? – Aline está orgulhosa, e não esconde isso de ninguém. – Vamos providenciar os preparativos para o ritual de iniciação, que será celebrado amanhã à noite!

24 de maio de 2010

FUN HOUSE XTREME N° 16: Especial Lobisomens

Acaba de sair o décimo sexto número do fanzine eletrônico FUN HOUSE XTREME, edição totalmente dedicada aos lobisomens.

O e-zine, capitaneado pelo IAM Godoy, tem participação de André Bozzetto Jr., Alfer Medeiros, Renato Rosatti, Adriano Miranda, M. D. Amado, Julio THCesar e dos sites Santuário dos Lobisomens (BR), The Werewolf’s Guide to Life (USA), The Werewolves.com (UK), Werewolf News (USA), além da equipe fixa do zine.

Links:

23 de maio de 2010

Bonecos de Lobisomem

Paul Nomad, do blog Idle Hands, fez um pequeno apanhado dos principais figures de lobisomem, das empresas McFarlane Toys, Yellow Submarine, Toybiz, Mezco, Neca, Sideshow e Sota. Vale a pena dar uma conferida!

18 de maio de 2010

Fúria Lupina Brasil - Degustação 3


Nota: este é um capítulo de degustação do livro "Fúria Lupina - Brasil" (2010). Para ler outros capítulos, CLIQUE AQUI.

Chegada Conturbada

No mesmo dia em que era celebrado em Joanópolis (São Paulo) o nascimento da menina-loba, na cidade de Poconé (Mato Grosso), a mais de mil e setecentos quilômetros de distância, uma morte era lamentada. É início de manhã, e o caixão com o corpo do padre João Landes é carregado por seis mãos amigas pelo cemitério São Francisco, rumo ao local do descanso eterno deste querido cidadão.
No triste cortejo fúnebre, onde muitos rostos infelizes despontam de cada canto, uma pessoa tenta a todo custo acalmar o profundo sofrimento que a domina neste momento. Trata-se de Maria do Rosário, prima do falecido, uma das pessoas mais chegadas a ele. Ela sempre ia às missas e o auxiliava nas atividades da paróquia, e o padre frequentava sua casa.
A notícia do ataque do coração fulminante que matou o primo, com trinta e oito anos de idade, foi recebida inicialmente com estupefação, seguida de uma depressão profunda. Isso não é nada saudável, visto que Maria está grávida, na vigésima-sétima semana de gestação.
Ela procura se acalmar, pois já não é tão jovem (tem quarenta e dois anos de idade), e sabe que sua gravidez é de risco. Este filho veio sem ser esperado, e seu marido Antônio não demonstrou a mínima satisfação quando soube desta gravidez. Maria percebeu de imediato que desde então ele se fechou, tornou-se amargo e esquivo. Achava que o problema do marido era a preocupação de mais uma vida sob sua responsabilidade, visto que o pedreiro, de poucas posses, já tinha seis filhas, tendo a mais nova (a única solteira) doze anos de idade. Mas a verdade, ignorada por ela, é mais cruel, e vai além de uma simples preocupação de quantas bocas alimentar.
Antônio, já há um bom tempo, desconfia de toda essa devoção por parte da mulher, e também não acredita na boa-vontade do padre. Para ele, um homem e uma mulher nunca podem firmar uma amizade sincera, sempre há sexo por trás disso. Mesmo havendo esse vínculo religioso. Mesmo sendo eles primos de primeiro grau.
Ele é homem vivido e desconfiado, sabe que o ser humano é traiçoeiro e aprendeu a não confiar em ninguém. Estava apenas esperando nascer a criança com a cara do padre, para resolver logo essa pendência de honra, fosse no braço, na faca ou na bala. E agora o homem da batina vai-se embora, sem dar-lhe a chance de lavar sua honra.
Acabrunhado, permanece meio que afastado do povo, andando numa alameda paralela à qual segue a grande procissão de admiradores do falecido e já saudoso padre Landes. Seu olhar se demora um pouco mais sobre sua esposa, mirrada, com aquela barriga de tamanho razoável, carregando o motivo do seu tormento. Ela nunca demonstrou sofrimento assim com ele, nem quando ele caiu de cama no último ano, quase morrendo. “Mas agora, só falta se jogar na cova junto com o caixão!", pensa ele desconsolado. “Podia cair mortinha com esse filhote do padre, que eu nem ia sentir falta!"
O que ocorreu em seguida pode nem ter ligação com esses pensamentos venenosos, mas Antônio se arrependeu até o final da sua vida por tê-los feito passar por sua cabeça. Maria do Rosário sente uma forte dor na nuca, e uma tontura repentina a ataca, fazendo com que caia pesadamente de joelhos, esparramando-se de lado pelo chão áspero. Um fio de sangue escorre por entre suas pernas, empapando o vestido e causando pânico nas pessoas presentes. Imediatamente, ela recebe socorro de alguns conhecidos, e é levada de carro às pressas para a maternidade mais próxima.
Para Antônio, tudo isso ocorre em câmera lenta, como se ele não estivesse ali presente. Quem permaneceu no cemitério, não sabia ao certo o que fazer: prosseguir com o enterro, seguir direto para o hospital, ou tentar tirar o marido e pai da criança do estado catatônico em que se encontrava.
Três horas depois, já recuperado do estado de choque em que estava, Antônio aguarda na sala de espera da maternidade. Depois de muito tempo afastado de qualquer tipo de fé, ele roga aos céus que sua mulher seja poupada. “Se tiver de escolher um, leve a criança! Eu prometo que deixo de lado toda essa questão de honra e de desconfiança." Quando o médico adentra a sala de espera e o chama de canto, o peso em seu coração denuncia que o homem de branco diante de si não é portador de boas notícias.
– Senhor Antônio, sua esposa entrou em trabalho de parto antes da hora, pois ainda estava no sétimo mês, em decorrência de um problema de pressão alta. Ela foi exposta a uma situação de muita tensão, e seu corpo sucumbiu.
– Doutor, eu quero saber apenas como ela está...
– Ela lutou bravamente nestas últimas horas, buscou energias que acredito que nem ela sabia que tinha. Uma mulher de muita fibra. Sofreu muito, mas agora seu sofrimento está acabado. Sinto dizer que sua esposa entrou em óbito há cerca de trinta minutos. Fizemos de tudo para reanimá-la, mas o esforço foi demais para ela. Foi uma verdadeira guerreira, que lutou com unhas e dentes para trazer essa criança ao mundo.
– Eu não quero saber de mais nada! – lágrimas escorrem pelo rosto sofrido e marcado por este duro golpe da vida.
– Calma, senhor Antônio, entenda que seu filho está vivo, porém com a saúde frágil, pois é um prematuro. Não pouparemos esforços para que essa criança consiga passar por esta provação.
– Que morra essa criança maldita, que tirou minha mulher de mim! – descontrolado, após gritar essa sentença impensada, ele deixa a maternidade, sem rumo.
Três de suas filhas também estavam na sala de espera e tomaram conhecimento do ocorrido, sendo a única reação delas abraçarem-se entre si, compartilhando esse momento de dor, buscando força uma na outra. Além do pesar, todas têm outra coisa em comum: a certeza de que não serão capazes de lidar com os procedimentos necessários. Será necessário pedir ajuda a Janaína, uma amiga da mãe, vinda de Campo Grande, que terá capacidade e sangue frio para tomar as rédeas da situação.
Uma mão diminuta e frágil segura o dedo indicador de Janaína. Mais uma vez, intensa emoção a invade, mesmo depois de passar mais de um mês ao lado deste pequeno leito de hospital, acompanhando diariamente a luta do pequeno José Dante pela vida. Segundo o médico, apenas vinte por cento dos bebês prematuros sobrevivem e, dada a ausência de alguns equipamentos nesta maternidade em particular, essa margem é consideravelmente diminuída. O profissional destacou dois fatores decisivos para essa sobrevivência: a presença dela, trazendo um ponto de apoio e afeto, e a imensa vontade de viver do bebê.
Ela deixa o quarto e dirige-se para a saída do hospital, pois está faminta e vai almoçar no restaurante de costume. Quase chegando ao estabelecimento, ela encontra dona Ana, a avó paterna do bebê, que aceita o convite de acompanhá-la na refeição. A conversa, obviamente, não poderia ter outro teor:
– É um milagre ele estar se desenvolvendo tão bem.
– Jana, eu sei que você é pessoa de confiança, além de muito compreensiva. Por causa disso, eu tenho esperança que você entenda o que vou te dizer...
– Por que está falando isso, quando o assunto é o seu neto, dona Ana?
– É por isso mesmo. Sou pessoa muito religiosa, e boa conhecedora das crendices populares. Você não notou nada de diferente na cara do menino?
– Que é pequena? É um pobre prematuro, coitado!
– Não, não. Preste atenção: ele tem as sobrancelhas unidas. – Janaína esboça um protesto, que é prontamente repelido por um forte aperto de mão de dona Ana. – Escute, porque eu só tenho coragem de dizer isto uma vez. Ele é o sétimo filho, numa casa onde só tinha filha mulher. Ronda essa desconfiança do finado Landes... imagina, mulher que se envolve com padre é uma coisa, e ainda primo! Era para esse menino ter morrido, nenhum doutor consegue explicar pela ciência como ele está vivo. É por causa disso tudo que eu digo: isso é coisa sobrenatural. Tenho certeza de que ele é um...
– Ah, faça-me o favor, dona Ana! Logo a senhora, professora aposentada, mulher culta, vai cair na besteira de acreditar numa bobagem dessas!
– É muita coincidência para não ser verdade! É lobisomem sim! Por isso que eu acho que deve ser a irmã mais velha a batizá-lo! Assim a gente quebra a maldição!
– De jeito nenhum! Eu e meu irmão firmamos compromisso com a mãe da criança, e vamos cumprir, nem que ele seja o próprio demônio encarnado! A senhora me dê licença, porque essa conversa estragou meu apetite!
A velha senhora olha a moça pagar a conta, sem se preocupar com o troco, e sair bufando porta afora. Enquanto termina sua refeição, pensa com toda a calma que é de seu costume: “ela é quem sabe. Minha certeza é que nunca darei muita confiança a essa cria de feitiçaria, que vai viver à custa do meu filho."

Fúria Lupina Brasil - Degustação 2


Nota: este é um capítulo de degustação do livro "Fúria Lupina - Brasil" (2010). Para ler outros capítulos, CLIQUE AQUI.

Surge Um Caçador

Joe "Hell" Vansing aprecia a sua tequila, recostado no balcão. Morador de Hidalgo (Texas), ganha a vida com negócios ilícitos, como contrabando e golpes. Adora armas e, segundo ele mesmo, "toda cria do Tio Sam deve empunhar uma arma de fogo e se orgulhar disso". Além disso, possui um gosto todo especial pela caça, "um prazer quase sexual", conforme costuma dizer. Já fez parte de caçadas, tanto legais quanto clandestinas, em território norte-americano, e também na Austrália e na África.
"De vez em quando preciso arrastar meu esqueleto até o México, onde posso cometer alguns excessos que não ousaria na minha amada pátria", diz o caçador sempre que é questionado sobre suas visitas ao país vizinho. Não entraremos em detalhes sórdidos sobre tais práticas, porque todos os interesses mundanos de Vansing se tornarão insignificantes após os acontecimentos desta noite.
Joe está em um bar não muito bem frequentado, na periferia da cidade de Reynosa, sentado em frente a um balcão manchado e molhado. Movimenta os olhos vagarosamente, visualizando o ambiente ao seu redor. Cerca de dez homens mal-encarados distribuem-se entre a velha mesa de bilhar, o pequeno balcão e a área livre existente entre a porta do estabelecimento e os banheiros, à direita de quem entra.
Uma mistura caótica de sons inunda o ambiente, formada pelas animadas conversas dos grupos de frequentadores, por uma velha jukebox executando sofregamente uma versão de "Cama de Piedra", de Cuco Sánchez e, finalmente, por uma pequena TV atrás do balcão, ligada no noticiário local.
O clima geral é de comemoração, visto que o México acaba de sagrar-se campeão da Concacaf, conquistando assim uma vaga para participar da Copa do Mundo de Futebol do ano seguinte (1978), na Argentina. O telejornal da TV mostra os gols da última partida da seleção nacional, destacando a intensa participação da torcida mexicana, nesse campeonato em que foram anfitriões.
– Isso para mim é esporte de garotinhas! Pagaria para ver esses morenos na Liga Nacional de Beisebol ou na NFL. Teriam umas aulinhas práticas sobre o que é esporte de homens de verdade! – sussurra para si mesmo Joe, sem disfarçar um sorrisinho de escárnio.
Quando o assunto do noticiário passou para política internacional, o destaque foi o presidente norte-americano que tomou posse naquele ano, Jimmy Carter. Nesse momento, Vansing se levanta do banco, termina sua bebida de forma rápida, paga a conta e deixa o bar. "Era só o que me faltava! O pior não é ter de aturar esse democrata maricas, que se esforça tanto para fazer acordos com os inimigos vermelhos!", pensa, indignado, "Pior mesmo é ouvir isso até em língua estrangeira! Não vou gastar meu espanhol com isso."
Pisando duro e bufando, ele entra no seu jipe Willys 1961, verde como o do exército. Chave na ignição, charuto na boca, chapéu na cabeça, fita cassete no rádio. Das caixas de som, a voz profunda e inconfundível de Johnny Cash entoa "Send a Picture of Mother". "Sim senhor", diz em voz alta o caçador, já melhorando seu humor, "agora somos só eu e Mr. Cash, rodando até os Estados Unidos da América, embalados pelo show de Folsom Prison!" Ele pega uma estradinha de terra mal-iluminada, atalho já bem conhecido até a fronteira.
Passados alguns minutos, com a música "I Got Stripes" finalizando, algo inesperado acontece: ele nota um movimento no mato alto da beira da estrada, à direita, algumas centenas de metros à frente. Prontamente, diminui a velocidade do carro e observa. Bem à frente do veículo, surge em fuga alucinada uma cabra, na mesma direção em que ia o Willys, em diagonal. No seu encalço, o maior cachorro que Joe já tinha visto em toda a sua vida.
Uma freada brusca, chapéu no colo, charuto no chão, rádio silenciado. Ele não acredita no que presencia naquele momento. Após um salto incrível, a fera crava suas garras no caprino, que acaba se desequilibrando, tombando a aproximadamente cem metros do jipe.
No tempo de uma piscada de olho, o pobre animal já está convulsionando na beira da estrada, sucumbindo à feroz investida da besta selvagem. A cabeça lupina desce, num movimento rápido e preciso. O pescoço da presa é dilacerado de uma forma mortal por presas infernais. Um jorro de sangue banha a estrada, sendo prontamente obstruído pelo focinho do atacante, que parece se deleitar em beber o líquido espesso e quente, segurando a cabeça da cabra com uma pata dianteira e o corpo com a outra.
O lobo, posicionado de lado em relação ao jipe, não toma conhecimento da luz dos faróis nem da presença do humano, pois sua sede é insuportável, turvando seus sentidos. Vansing, recuperado do susto inicial, vê uma oportunidade de ouro de levar esse troféu para casa.
Sem desviar os olhos da cena, apalpa o banco traseiro, à procura de uma sacola com valioso conteúdo: Christine, sua velha espingarda. Nunca se sabe quando a sua queridinha pode ser requerida, e ele agradece aos céus quando sente seu toque frio e reconfortante. Procurando ser o mais silencioso possível, ele abre a porta do jipe, posiciona a mira e dispara.
O tiro acerta a lateral da cabeça do bicho, e o caçador orgulhosamente solta um "headshot!", velho bordão que adota quando a bala acerta o alvo dessa maneira. Nem bem teve tempo de baixar a espingarda, e seus olhos arregalam-se, não acreditando no que veem.
O canídeo, que deveria estar estatelado na estrada, simplesmente vira a cabeça na direção dele e emite um urro medonho, que é um misto de protesto e intimidação. Pior ainda: ele se levanta nas patas traseiras e vem caminhando, como se fosse uma pessoa! Novamente, Christine é posicionada, e outra bala voa com endereço certo, desta vez no meio dos olhos do cão dos infernos.
– Jesus Cristo! – é a única frase que Joe consegue formular nesse momento de pavor.
Mesmo indo contra toda a lógica, ele pode jurar que a bala ricocheteou, ao invés de estourar a cabeça desse ser, fruto algum pesadelo. A única reação do lobisomem foi parar sua marcha ameaçadora, levando as garras à cabeça e demonstrando uma certa desorientação, visto que cambaleia levemente em direção ao meio da estrada.
O único som audível neste momento é uma marcha arranhada, engatada às pressas, seguida de um arranque violento do jipe. O caçador, cego de pavor, nem vê como a criatura foi atropelada, sente somente o solavanco das rodas do lado esquerdo, passando por cima do ser macabro.
Ele para algumas dezenas de metros à frente, torcendo para que tivesse sobrado algo da carcaça para ele levar aos EUA. Pelo menos a cabeça ele manteria como troféu. Ainda sentado, ofegante e suando em bicas, apoia o braço no banco do passageiro e se vira para ver o resultado do seu ataque. Naquela direção, a escuridão é quase total, amenizada somente pelas luzes de freio do automóvel.
Para seu desespero, o demônio peludo se levanta, sujo de terra e emitindo um rosnado ameaçador. Em meio a todas as formas possíveis que Joe conhece de amaldiçoar alguém em inglês norte-americano, o jipe parte para o ataque, em marcha-a-ré, atingindo novamente a criatura, que desta vez procura se segurar junto ao estepe que está posicionado na traseira.
A velocidade aumenta. De relance, o Vansing acredita ver um volume à beira da estrada, um barranco ou algo do tipo. Com uma manobra brusca, a traseira do carro é conduzida nessa direção, e um grande estrondo preenche a noite quando ocorre o choque.
Ainda zonzo, o motorista pega uma lanterna no porta-luvas e sai, cambaleando para a traseira do jipe, do lado do passageiro. Ele percebe que o que ele achava ser um barranco é, na verdade, uma pequena formação rochosa. O lobisomem encontra-se prensado em diagonal, entre o estepe destruído junto com a traseira do jipe e a rocha. Por incrível que pareça, uma respiração curta e fraca ainda escapa do focinho, que sangra sem parar. Um braço está preso junto ao para-choque, outro está retorcido em meio aos destroços.
Espantado pela criatura não ter sido cortada ao meio no choque, Vansing o analisa com calma pela primeira vez. Sob o facho da lanterna, visualiza os tons de cinza e marrom do pelo, que vão clareando na área dos olhos, bochechas, em boa parte do focinho e no início do pescoço. "É um autêntico lobo mexicano!", pensa Joe, tirando um punhal do bolso. Ele pretende dar um fim a essa vida nefasta, através de uma sangria pela veia jugular.
Outro palavrão é jogado ao ar, quando não consegue furar o pescoço do bicho, danificando o punhal nas violentas e inúteis investidas. Aproximando a mão em pinça à área da tentativa frustrada de corte, através de um potente beliscão, ele descobre uma pele grossa como a do rinoceronte, porém mais flexível. Quase que o seu relaxamento, proveniente da curiosidade, lhe custa caro. Repentinamente, o lobo vira a cabeça e tenta mordê-lo, e ele escapa por muito pouco.
– Vou te mostrar do que Hell Vansing é feito! Tenho um brinquedinho que vem bem a calhar!
Voltando à cabine do jipe, procura novamente a sacola de onde tirou Christine. Dela, retira um machado bem afiado, apesar da lâmina oxidada e do cabo gasto. O homem-lobo urra agonizante, diante da aproximação de seu carrasco. Um sorriso sádico rasga a face do caçador, e assim permanece enquanto o machado sobe e desce sem parar, num violento vai-e-vem que arranca faíscas da rocha, sangue do pescoço do lobo, e uma risada insana de Joe.
Quando finalmente a cabeça rola pela grama, o homem está exausto, seus braços tremem pelo esforço, que foi maior do que esperava (ele parou de contar na décima machadada), mas ele está satisfeito. Larga o machado, abaixa-se e pega a grande cabeça de lobo pelas orelhas.
– Eu venci no final, seu desgraçado! Filho de uma cadela sarnenta! – seu momento de glória, porém, dura pouco. – Mas que diabos de magia-negra é essa?
Espantado, ele larga a cabeça no chão, pois ela está se transfigurando. Os pelos caem e tornam-se cinzas retorcidas, ao mesmo tempo em que as feições de lobo tornam-se cada vez mais humanas. Ao final do processo, ele tem a seus pés uma cabeça de um adolescente de aproximadamente 15 anos de idade, com a pele do rosto pálida e macilenta.
Ao se virar para a traseira do Willys, percebe que a mesma metamorfose ocorreu com o corpo, que agora está aos pedaços. Um mal-estar indescritível invade suas entranhas e ele vomita, sofrendo de terríveis contrações no abdômen, mesmo não tendo mais nada no estômago.
Ele não sabe dizer quanto tempo levou até ocultar os restos mortais do garoto, jogar fora suas roupas sujas e limpar a traseira do jipe. Tem apenas uma leve noção de que faltam poucas horas para o raiar do dia. Ainda não conseguiu digerir o acontecido naquela estrada deserta do México, mas sabe que deve iniciar um exaustivo trabalho de pesquisa e aprimoramento, pois acaba de encontrar um objetivo para sua vida. E é em meio a esses pensamentos que prossegue em seu caminho de volta para casa.

13 de maio de 2010

Design - Capa do Livro

design by Silvio Medeiros

12 de maio de 2010

Fúria Lupina Brasil - Degustação 1


Nota: este é um capítulo de degustação do livro "Fúria Lupina - Brasil" (2010). Para ler outros capítulos, CLIQUE AQUI.

Dor e Sangue

Dor intensa, extrema. Células executam um balé macabro: a dissociação, a remodelagem e novamente a fusão. Fraturas em toda a extensão da estrutura óssea, distensões em cada músculo do corpo, rompimento de todos os ligamentos e tendões. Os órgãos internos entram num frenesi enlouquecedor durante a mutação, ao mesmo tempo em que os sentidos são ampliados e melhorados.
Com isso, uma cacofonia corpórea toma de assalto sua audição: o rufar de tambor do coração cada vez mais selvagem, os ossos do crânio se reencaixando, estalos absurdamente desagradáveis vindos de todas as partes do corpo. Surge um intenso calor, que vai além de qualquer febre humana, decorrente da imensa energia que é liberada nesse processo místico-biológico.
Apesar de durar apenas alguns segundos, essa agressão aos sentidos parece durar uma eternidade. Uma agonia terrível, que excede todos os limites do que uma pessoa pode suportar. Mas o ser que passa por esta provação não é humano, e agora tem em seu poder a recompensa por aguentar tudo isso.
Ao final da metamorfose, uma poderosa criatura levanta-se da posição fetal em que se encontrava. Uma grande cabeça de lobo move-se para a direita e para a esquerda, saboreando avidamente o que a noite tem a oferecer. Odores da madrugada envolvem o seu olfato, sua visão é perfeitamente clara, apesar de estar numa mata fechada, sua vasta pelagem negra arrepia-se ao sentir a pulsação da natureza ao seu redor. Até o final da noite, seu paladar também será requerido.
O ano é 1977, mas neste instante ele não quer saber o que é punk rock, Songs From The Wood, Motorhead. Deixa de se preocupar com a ditadura militar, o tufão Thelma, a tragédia de Tenerife. Ignora Niki Lauda, Corinthians, Star Wars, Cruz de Ferro. O humano não está mais aqui, quem comanda agora é o lobo. Todas as fraquezas e incertezas são deixadas de lado, o frio raciocínio une-se a valiosos instintos.
A visão deste homem-lobo é aterradora e ao mesmo tempo impressionante. Em postura ereta, com seus mais de dois metros de altura, garras e dentes em posição de ataque, é uma máquina de matar pronta para enfrentar quem quer que seja, apresentando também agilidade para sobrepor os mais difíceis obstáculos. Sobre quatro patas, tem otimizadas suas qualidades de exímio farejador, apresenta flexibilidade e explosão muscular que permitem empreender corridas velozes, saltos inacreditáveis, esquivas e ataques inesperados. Possui uma força sobrenatural, sem abandonar a inteligência da mente humana.
Esta noite, não irá perambular a esmo, até que uma vítima desavisada entre no seu campo de ação. Seu objetivo é bem definido, e para ele vem se preparando nos últimos tempos, tendo certeza de que fará tudo o que é necessário, com precisão infalível. Um uivo curto é lançado em direção às copas das árvores que o cercam, e ele inicia seu galope, para não parar até chegar ao local definido.
Às margens da mata, ergue-se imponente uma grande fazenda, rústica e ao mesmo tempo bela. Em um dos quartos da propriedade, uma mulher respira com dificuldade. Ela também suporta grande dor física, mas o motivo, porém é bem diferente. Esta guerreira trava agora uma nobre batalha, que é a de trazer uma nova vida a este mundo de sofrimento.
Oito horas atrás, teve início seu trabalho de parto. A parteira foi solicitada, atendendo prontamente ao chamado, chegando a cavalo juntamente com uma ajudante. Desde então, a mãe vem sendo assistida pela dupla, recebendo massagens, compressas e palavras de conforto. Apesar de não ser o primeiro filho, a gestante aprecia esses cuidados e nutre por elas um sincero sentimento de companheirismo e de gratidão.
O ar cheira a álcool, e sua visão é preenchida pelo branco límpido dos lençóis e toalhas que estão ao seu redor, sempre à mão das mulheres que a estão auxiliando. As contrações são cada vez menos espaçadas, e a dor lancinante dá o aviso de que chegou a hora.
A parteira a posiciona de cócoras, e com uma voz doce sussurra em seu ouvido que este momento é somente seu e do bebê, posicionando-se às suas costas. Cores e luzes explodem em seus olhos, gemidos prolongados escapam de seus lábios. Os minutos arrastam-se exaustivamente. Dor, esforço, expulsão, alívio, choro.
O lobisomem fareja o ar. Apesar da distância, o cheiro de uma nova vida é tão pungente que parece traçar espirais no ar, como se fosse uma via com letreiros luminosos indicando o caminho a seguir, instigando os sentidos da criatura, encorajando-o a prosseguir com sua marcha através das trevas que inundam a floresta.
Ela se vê agora deitada de costas, sobre uma manta colocada no chão do quarto. Um choro de bebê preenche o recinto, e as mãos habilidosas da parteira trazem a criança para junto da mãe, ainda com o cordão umbilical intacto.
Este pequeno presente, que agora descansa silenciosamente sobre seu peito, compensa todo o sofrimento e limitações pelos quais passou nos últimos tempos. As mulheres concluem o processo de rompimento do cordão e as últimas providências do parto, deixando a mulher e a criança instaladas confortavelmente, partindo logo em seguida.
Um amigo da família providencia o transporte de volta das mulheres, pois os cavalos que elas trouxeram estão agitados, e recusam-se a deixar a cocheira da propriedade, com olhos arregalados e espumando. Eles são obrigados a apelar para o caminhão da fazenda, que não é o melhor em conforto, mas que as levará em segurança para suas casas.
Quando deixam para trás o portão aberto da propriedade, um grande alívio toma conta das duas. A ajudante poderia jurar que, em sua visão periférica, tenha vislumbrado uma sombra atravessar a estrada logo após a passagem do caminhão, em direção à propriedade de onde acabaram de sair. Ela espera que, para o bem de todos, isso tenha sido somente uma ilusão, criada pelo cansaço.
Se soubesse o quanto estava errada, em aflição padeceria. Um grande vulto move-se lentamente, junto a uma das janelas do cômodo em que se deu o nascimento. Não é possível ver exatamente do que se trata, pois as cortinas da janela não fornecem transparência suficiente. A mãe, absorvida pelo momento único de contato com o recém-nascido, não ouve a respiração longa e ritmada que vem do lado de fora.
Não há vento, mas mesmo assim as cortinas fazem um movimento, avolumando-se cada vez mais para dentro do quarto, até que por uma fresta irrompe um grande focinho. Um farejar, um avanço lento e contínuo, cabeça, braços, tronco, patas traseiras.
Após adentrar o quarto sorrateiramente, a criatura se levanta sobre as patas traseiras e avança para a cama, o olhar fixo no bebê. A mãe, exausta, encara o lobo com olhos arregalados, caindo em um estupor que turva sua visão e faz fugir o ar de seus pulmões. Um único pensamento invade sua mente: seus olhos são totalmente humanos. Para um humano que se transforma numa besta selvagem, nada mais justo que a única parte de seu corpo que permaneça imutável seja a janela da alma, mantendo o vínculo entre homem e fera. Com esse pensamento, tomada de uma emoção descontrolada, ela desmaia.
O lobisomem, não tomando conhecimento da reação da mulher, aproxima-se lentamente da criança, com os pelos do pescoço eriçados. Olhos fixos, sem piscar, acomoda-a entre suas mãos em concha, envolvendo-a facilmente. O focinho vai se aproximando, abrindo-se e exibindo imensas presas gotejantes. Sua língua toca o cordão umbilical do bebê, que pela primeira vez depois da separação da mãe abre os olhos, fita a criatura e permanece calmo, parecendo saber que seu destino está totalmente entregue ao lobo. E ele, com certeza, já tem o que quer e sabe o que fazer.
Um olhar de agradecimento é direcionado à mãe, ele se vira e empurra as portas duplas, saindo para a ampla varanda da casa isolada. Sua cria, uma fêmea, é saudável e tem seu sangue nas veias. Com certeza, será motivo de muito orgulho nos anos vindouros. Esta será uma noite de celebração, e seus irmãos devem ser convocados.
Ele enche os pulmões com o ar frio da madrugada, sentindo um júbilo indescritível, e emite o uivo mais potente que esta cidade já ouviu. Em resposta, outros uivos enchem a noite, vindos de diferentes direções, a quilômetros de distância.
Os moradores da cidade, ao ouvirem essa sinfonia noturna, que provoca arrepios até no homem mais corajoso, se encolhem em suas camas, tentando a muito custo conciliar o sono. Resta apenas aguardar a chegada do sol, trazendo o conforto de um novo dia. Esta é, efetivamente, uma noite para permanecer dentro de casa, pois a alcateia de Joanópolis está eufórica com a chegada de mais um membro.