12 de maio de 2010

Fúria Lupina Brasil - Degustação 1


Nota: este é um capítulo de degustação do livro "Fúria Lupina - Brasil" (2010). Para ler outros capítulos, CLIQUE AQUI.

Dor e Sangue

Dor intensa, extrema. Células executam um balé macabro: a dissociação, a remodelagem e novamente a fusão. Fraturas em toda a extensão da estrutura óssea, distensões em cada músculo do corpo, rompimento de todos os ligamentos e tendões. Os órgãos internos entram num frenesi enlouquecedor durante a mutação, ao mesmo tempo em que os sentidos são ampliados e melhorados.
Com isso, uma cacofonia corpórea toma de assalto sua audição: o rufar de tambor do coração cada vez mais selvagem, os ossos do crânio se reencaixando, estalos absurdamente desagradáveis vindos de todas as partes do corpo. Surge um intenso calor, que vai além de qualquer febre humana, decorrente da imensa energia que é liberada nesse processo místico-biológico.
Apesar de durar apenas alguns segundos, essa agressão aos sentidos parece durar uma eternidade. Uma agonia terrível, que excede todos os limites do que uma pessoa pode suportar. Mas o ser que passa por esta provação não é humano, e agora tem em seu poder a recompensa por aguentar tudo isso.
Ao final da metamorfose, uma poderosa criatura levanta-se da posição fetal em que se encontrava. Uma grande cabeça de lobo move-se para a direita e para a esquerda, saboreando avidamente o que a noite tem a oferecer. Odores da madrugada envolvem o seu olfato, sua visão é perfeitamente clara, apesar de estar numa mata fechada, sua vasta pelagem negra arrepia-se ao sentir a pulsação da natureza ao seu redor. Até o final da noite, seu paladar também será requerido.
O ano é 1977, mas neste instante ele não quer saber o que é punk rock, Songs From The Wood, Motorhead. Deixa de se preocupar com a ditadura militar, o tufão Thelma, a tragédia de Tenerife. Ignora Niki Lauda, Corinthians, Star Wars, Cruz de Ferro. O humano não está mais aqui, quem comanda agora é o lobo. Todas as fraquezas e incertezas são deixadas de lado, o frio raciocínio une-se a valiosos instintos.
A visão deste homem-lobo é aterradora e ao mesmo tempo impressionante. Em postura ereta, com seus mais de dois metros de altura, garras e dentes em posição de ataque, é uma máquina de matar pronta para enfrentar quem quer que seja, apresentando também agilidade para sobrepor os mais difíceis obstáculos. Sobre quatro patas, tem otimizadas suas qualidades de exímio farejador, apresenta flexibilidade e explosão muscular que permitem empreender corridas velozes, saltos inacreditáveis, esquivas e ataques inesperados. Possui uma força sobrenatural, sem abandonar a inteligência da mente humana.
Esta noite, não irá perambular a esmo, até que uma vítima desavisada entre no seu campo de ação. Seu objetivo é bem definido, e para ele vem se preparando nos últimos tempos, tendo certeza de que fará tudo o que é necessário, com precisão infalível. Um uivo curto é lançado em direção às copas das árvores que o cercam, e ele inicia seu galope, para não parar até chegar ao local definido.
Às margens da mata, ergue-se imponente uma grande fazenda, rústica e ao mesmo tempo bela. Em um dos quartos da propriedade, uma mulher respira com dificuldade. Ela também suporta grande dor física, mas o motivo, porém é bem diferente. Esta guerreira trava agora uma nobre batalha, que é a de trazer uma nova vida a este mundo de sofrimento.
Oito horas atrás, teve início seu trabalho de parto. A parteira foi solicitada, atendendo prontamente ao chamado, chegando a cavalo juntamente com uma ajudante. Desde então, a mãe vem sendo assistida pela dupla, recebendo massagens, compressas e palavras de conforto. Apesar de não ser o primeiro filho, a gestante aprecia esses cuidados e nutre por elas um sincero sentimento de companheirismo e de gratidão.
O ar cheira a álcool, e sua visão é preenchida pelo branco límpido dos lençóis e toalhas que estão ao seu redor, sempre à mão das mulheres que a estão auxiliando. As contrações são cada vez menos espaçadas, e a dor lancinante dá o aviso de que chegou a hora.
A parteira a posiciona de cócoras, e com uma voz doce sussurra em seu ouvido que este momento é somente seu e do bebê, posicionando-se às suas costas. Cores e luzes explodem em seus olhos, gemidos prolongados escapam de seus lábios. Os minutos arrastam-se exaustivamente. Dor, esforço, expulsão, alívio, choro.
O lobisomem fareja o ar. Apesar da distância, o cheiro de uma nova vida é tão pungente que parece traçar espirais no ar, como se fosse uma via com letreiros luminosos indicando o caminho a seguir, instigando os sentidos da criatura, encorajando-o a prosseguir com sua marcha através das trevas que inundam a floresta.
Ela se vê agora deitada de costas, sobre uma manta colocada no chão do quarto. Um choro de bebê preenche o recinto, e as mãos habilidosas da parteira trazem a criança para junto da mãe, ainda com o cordão umbilical intacto.
Este pequeno presente, que agora descansa silenciosamente sobre seu peito, compensa todo o sofrimento e limitações pelos quais passou nos últimos tempos. As mulheres concluem o processo de rompimento do cordão e as últimas providências do parto, deixando a mulher e a criança instaladas confortavelmente, partindo logo em seguida.
Um amigo da família providencia o transporte de volta das mulheres, pois os cavalos que elas trouxeram estão agitados, e recusam-se a deixar a cocheira da propriedade, com olhos arregalados e espumando. Eles são obrigados a apelar para o caminhão da fazenda, que não é o melhor em conforto, mas que as levará em segurança para suas casas.
Quando deixam para trás o portão aberto da propriedade, um grande alívio toma conta das duas. A ajudante poderia jurar que, em sua visão periférica, tenha vislumbrado uma sombra atravessar a estrada logo após a passagem do caminhão, em direção à propriedade de onde acabaram de sair. Ela espera que, para o bem de todos, isso tenha sido somente uma ilusão, criada pelo cansaço.
Se soubesse o quanto estava errada, em aflição padeceria. Um grande vulto move-se lentamente, junto a uma das janelas do cômodo em que se deu o nascimento. Não é possível ver exatamente do que se trata, pois as cortinas da janela não fornecem transparência suficiente. A mãe, absorvida pelo momento único de contato com o recém-nascido, não ouve a respiração longa e ritmada que vem do lado de fora.
Não há vento, mas mesmo assim as cortinas fazem um movimento, avolumando-se cada vez mais para dentro do quarto, até que por uma fresta irrompe um grande focinho. Um farejar, um avanço lento e contínuo, cabeça, braços, tronco, patas traseiras.
Após adentrar o quarto sorrateiramente, a criatura se levanta sobre as patas traseiras e avança para a cama, o olhar fixo no bebê. A mãe, exausta, encara o lobo com olhos arregalados, caindo em um estupor que turva sua visão e faz fugir o ar de seus pulmões. Um único pensamento invade sua mente: seus olhos são totalmente humanos. Para um humano que se transforma numa besta selvagem, nada mais justo que a única parte de seu corpo que permaneça imutável seja a janela da alma, mantendo o vínculo entre homem e fera. Com esse pensamento, tomada de uma emoção descontrolada, ela desmaia.
O lobisomem, não tomando conhecimento da reação da mulher, aproxima-se lentamente da criança, com os pelos do pescoço eriçados. Olhos fixos, sem piscar, acomoda-a entre suas mãos em concha, envolvendo-a facilmente. O focinho vai se aproximando, abrindo-se e exibindo imensas presas gotejantes. Sua língua toca o cordão umbilical do bebê, que pela primeira vez depois da separação da mãe abre os olhos, fita a criatura e permanece calmo, parecendo saber que seu destino está totalmente entregue ao lobo. E ele, com certeza, já tem o que quer e sabe o que fazer.
Um olhar de agradecimento é direcionado à mãe, ele se vira e empurra as portas duplas, saindo para a ampla varanda da casa isolada. Sua cria, uma fêmea, é saudável e tem seu sangue nas veias. Com certeza, será motivo de muito orgulho nos anos vindouros. Esta será uma noite de celebração, e seus irmãos devem ser convocados.
Ele enche os pulmões com o ar frio da madrugada, sentindo um júbilo indescritível, e emite o uivo mais potente que esta cidade já ouviu. Em resposta, outros uivos enchem a noite, vindos de diferentes direções, a quilômetros de distância.
Os moradores da cidade, ao ouvirem essa sinfonia noturna, que provoca arrepios até no homem mais corajoso, se encolhem em suas camas, tentando a muito custo conciliar o sono. Resta apenas aguardar a chegada do sol, trazendo o conforto de um novo dia. Esta é, efetivamente, uma noite para permanecer dentro de casa, pois a alcateia de Joanópolis está eufórica com a chegada de mais um membro.

5 comentários:

Álisson Zimermann disse...

eita O_o... que loucura!... acho que eu vou comprar esse livro =X

Cristiano Contreiras disse...

belo conceito de blog, gostei muito mesmo e achei denso e inteligente os posts. te sigo!

Unknown disse...

Parabéns meu amigo!
Está muito interessante o início do seu livro.
Muito sucesso pra você.
Grande abraço!

Unknown disse...

Caraca... Que que é isso!!!

GOSTEEEEIIIII!!!!

Manda mais um Barril que esse Rum vai LOOONGE!!!

P-)

\o/\o/\o/

Unknown disse...

Muito bom... Sucesso para você, tenho que adquirir este livro!

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