Nota: este é um capítulo de degustação do livro "Fúria Lupina - Brasil" (2010). Para ler outros capítulos, CLIQUE AQUI.
Chegada Conturbada
No mesmo dia em que era celebrado em Joanópolis (São Paulo) o nascimento da menina-loba, na cidade de Poconé (Mato Grosso), a mais de mil e setecentos quilômetros de distância, uma morte era lamentada. É início de manhã, e o caixão com o corpo do padre João Landes é carregado por seis mãos amigas pelo cemitério São Francisco, rumo ao local do descanso eterno deste querido cidadão.
No triste cortejo fúnebre, onde muitos rostos infelizes despontam de cada canto, uma pessoa tenta a todo custo acalmar o profundo sofrimento que a domina neste momento. Trata-se de Maria do Rosário, prima do falecido, uma das pessoas mais chegadas a ele. Ela sempre ia às missas e o auxiliava nas atividades da paróquia, e o padre frequentava sua casa.
A notícia do ataque do coração fulminante que matou o primo, com trinta e oito anos de idade, foi recebida inicialmente com estupefação, seguida de uma depressão profunda. Isso não é nada saudável, visto que Maria está grávida, na vigésima-sétima semana de gestação.
Ela procura se acalmar, pois já não é tão jovem (tem quarenta e dois anos de idade), e sabe que sua gravidez é de risco. Este filho veio sem ser esperado, e seu marido Antônio não demonstrou a mínima satisfação quando soube desta gravidez. Maria percebeu de imediato que desde então ele se fechou, tornou-se amargo e esquivo. Achava que o problema do marido era a preocupação de mais uma vida sob sua responsabilidade, visto que o pedreiro, de poucas posses, já tinha seis filhas, tendo a mais nova (a única solteira) doze anos de idade. Mas a verdade, ignorada por ela, é mais cruel, e vai além de uma simples preocupação de quantas bocas alimentar.
Antônio, já há um bom tempo, desconfia de toda essa devoção por parte da mulher, e também não acredita na boa-vontade do padre. Para ele, um homem e uma mulher nunca podem firmar uma amizade sincera, sempre há sexo por trás disso. Mesmo havendo esse vínculo religioso. Mesmo sendo eles primos de primeiro grau.
Ele é homem vivido e desconfiado, sabe que o ser humano é traiçoeiro e aprendeu a não confiar em ninguém. Estava apenas esperando nascer a criança com a cara do padre, para resolver logo essa pendência de honra, fosse no braço, na faca ou na bala. E agora o homem da batina vai-se embora, sem dar-lhe a chance de lavar sua honra.
Acabrunhado, permanece meio que afastado do povo, andando numa alameda paralela à qual segue a grande procissão de admiradores do falecido e já saudoso padre Landes. Seu olhar se demora um pouco mais sobre sua esposa, mirrada, com aquela barriga de tamanho razoável, carregando o motivo do seu tormento. Ela nunca demonstrou sofrimento assim com ele, nem quando ele caiu de cama no último ano, quase morrendo. “Mas agora, só falta se jogar na cova junto com o caixão!", pensa ele desconsolado. “Podia cair mortinha com esse filhote do padre, que eu nem ia sentir falta!"
O que ocorreu em seguida pode nem ter ligação com esses pensamentos venenosos, mas Antônio se arrependeu até o final da sua vida por tê-los feito passar por sua cabeça. Maria do Rosário sente uma forte dor na nuca, e uma tontura repentina a ataca, fazendo com que caia pesadamente de joelhos, esparramando-se de lado pelo chão áspero. Um fio de sangue escorre por entre suas pernas, empapando o vestido e causando pânico nas pessoas presentes. Imediatamente, ela recebe socorro de alguns conhecidos, e é levada de carro às pressas para a maternidade mais próxima.
Para Antônio, tudo isso ocorre em câmera lenta, como se ele não estivesse ali presente. Quem permaneceu no cemitério, não sabia ao certo o que fazer: prosseguir com o enterro, seguir direto para o hospital, ou tentar tirar o marido e pai da criança do estado catatônico em que se encontrava.
Três horas depois, já recuperado do estado de choque em que estava, Antônio aguarda na sala de espera da maternidade. Depois de muito tempo afastado de qualquer tipo de fé, ele roga aos céus que sua mulher seja poupada. “Se tiver de escolher um, leve a criança! Eu prometo que deixo de lado toda essa questão de honra e de desconfiança." Quando o médico adentra a sala de espera e o chama de canto, o peso em seu coração denuncia que o homem de branco diante de si não é portador de boas notícias.
– Senhor Antônio, sua esposa entrou em trabalho de parto antes da hora, pois ainda estava no sétimo mês, em decorrência de um problema de pressão alta. Ela foi exposta a uma situação de muita tensão, e seu corpo sucumbiu.
– Doutor, eu quero saber apenas como ela está...
– Ela lutou bravamente nestas últimas horas, buscou energias que acredito que nem ela sabia que tinha. Uma mulher de muita fibra. Sofreu muito, mas agora seu sofrimento está acabado. Sinto dizer que sua esposa entrou em óbito há cerca de trinta minutos. Fizemos de tudo para reanimá-la, mas o esforço foi demais para ela. Foi uma verdadeira guerreira, que lutou com unhas e dentes para trazer essa criança ao mundo.
– Eu não quero saber de mais nada! – lágrimas escorrem pelo rosto sofrido e marcado por este duro golpe da vida.
– Calma, senhor Antônio, entenda que seu filho está vivo, porém com a saúde frágil, pois é um prematuro. Não pouparemos esforços para que essa criança consiga passar por esta provação.
– Que morra essa criança maldita, que tirou minha mulher de mim! – descontrolado, após gritar essa sentença impensada, ele deixa a maternidade, sem rumo.
Três de suas filhas também estavam na sala de espera e tomaram conhecimento do ocorrido, sendo a única reação delas abraçarem-se entre si, compartilhando esse momento de dor, buscando força uma na outra. Além do pesar, todas têm outra coisa em comum: a certeza de que não serão capazes de lidar com os procedimentos necessários. Será necessário pedir ajuda a Janaína, uma amiga da mãe, vinda de Campo Grande, que terá capacidade e sangue frio para tomar as rédeas da situação.
Uma mão diminuta e frágil segura o dedo indicador de Janaína. Mais uma vez, intensa emoção a invade, mesmo depois de passar mais de um mês ao lado deste pequeno leito de hospital, acompanhando diariamente a luta do pequeno José Dante pela vida. Segundo o médico, apenas vinte por cento dos bebês prematuros sobrevivem e, dada a ausência de alguns equipamentos nesta maternidade em particular, essa margem é consideravelmente diminuída. O profissional destacou dois fatores decisivos para essa sobrevivência: a presença dela, trazendo um ponto de apoio e afeto, e a imensa vontade de viver do bebê.
Ela deixa o quarto e dirige-se para a saída do hospital, pois está faminta e vai almoçar no restaurante de costume. Quase chegando ao estabelecimento, ela encontra dona Ana, a avó paterna do bebê, que aceita o convite de acompanhá-la na refeição. A conversa, obviamente, não poderia ter outro teor:
– É um milagre ele estar se desenvolvendo tão bem.
– Jana, eu sei que você é pessoa de confiança, além de muito compreensiva. Por causa disso, eu tenho esperança que você entenda o que vou te dizer...
– Por que está falando isso, quando o assunto é o seu neto, dona Ana?
– É por isso mesmo. Sou pessoa muito religiosa, e boa conhecedora das crendices populares. Você não notou nada de diferente na cara do menino?
– Que é pequena? É um pobre prematuro, coitado!
– Não, não. Preste atenção: ele tem as sobrancelhas unidas. – Janaína esboça um protesto, que é prontamente repelido por um forte aperto de mão de dona Ana. – Escute, porque eu só tenho coragem de dizer isto uma vez. Ele é o sétimo filho, numa casa onde só tinha filha mulher. Ronda essa desconfiança do finado Landes... imagina, mulher que se envolve com padre é uma coisa, e ainda primo! Era para esse menino ter morrido, nenhum doutor consegue explicar pela ciência como ele está vivo. É por causa disso tudo que eu digo: isso é coisa sobrenatural. Tenho certeza de que ele é um...
– Ah, faça-me o favor, dona Ana! Logo a senhora, professora aposentada, mulher culta, vai cair na besteira de acreditar numa bobagem dessas!
– É muita coincidência para não ser verdade! É lobisomem sim! Por isso que eu acho que deve ser a irmã mais velha a batizá-lo! Assim a gente quebra a maldição!
– De jeito nenhum! Eu e meu irmão firmamos compromisso com a mãe da criança, e vamos cumprir, nem que ele seja o próprio demônio encarnado! A senhora me dê licença, porque essa conversa estragou meu apetite!
A velha senhora olha a moça pagar a conta, sem se preocupar com o troco, e sair bufando porta afora. Enquanto termina sua refeição, pensa com toda a calma que é de seu costume: “ela é quem sabe. Minha certeza é que nunca darei muita confiança a essa cria de feitiçaria, que vai viver à custa do meu filho."
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